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Globo com Três Graças: Quando a Ficção Vira um Perigoso Placebo Social

opinião - PT

Imagine uma idosa, dependente dos remédios fornecidos pelo governo para sua saúde, que repentinamente decide interromper o tratamento. O motivo, porém, não é um efeito colateral ou uma melhora clínica, mas uma desconfiança plantada pela ficção. Ela assiste à novela Três Graças e passa a acreditar que, assim como na trama, os medicamentos públicos podem ser falsificados. Este caso real é a ponta de um iceberg perigoso: o poder da televisão de moldar a realidade em tempos de frágil confiança institucional, fake news e baixa cobertura vacinal.

A princípio, pode parecer um exagero ou uma falta de crítica individual. No entanto, a própria emissora parece reconhecer o risco. Nos intervalos da novela em Minas Gerais, uma grande rede de farmácias veicula um comercial onde personagens explicitamente afirmam: “sem a falsificação do remédio na novela, não haveria história, mas na vida real quem compra na rede pode confiar”. É um disclaimer disfarçado de entretenimento, uma admissão tácita de que a linha entre a trama e a vida real pode, de fato, ser atravessada.

Este fenômeno atual, porém, não é uma anomalia. É a reencenação de um roteiro poder que a Globo domina há décadas. Durante a redemocratização, a emissora não era um mero espelho da sociedade, mas um ativo escultor da opinião pública. Novelas como Vale Tudo (1988) forjaram o arquétipo do corrupto luxuoso que “dá uma banana” para o país, imagem que se impregnou no imaginário popular e ecoou diretamente na campanha presidencial da “caça aos marajás”. Na sequência, O Salvador da Pátria (1989) ridicularizava a figura do líder populista e semianalfabeto, Sassá Mutema, criando uma narrativa que associava origem humilde e simplicidade à incompetência para governar.

A relação simbiótica entre o político e o personagem de novela se consolidou com a eleição de Fernando Collor, um jovem com perfil de galã, cuja imagem foi meticulosamente construída e, nas vésperas da eleição, decisivamente impulsionada por um diretor da Globo em um debate televisionado. A emissora, então, não apenas relatava os fatos, mas os instrumentalizava. Quando Collor caiu em desgraça, a minissérie Anos Rebeldes (1992) serviu como um combustível narrativo que inflamou os ânimos da geração que foi às ruas pelos “caras-pintadas”.

O padrão se repete em ciclos. Em 2015, A Regra do Jogo ia ao ar após o Jornal Nacional, que noticiava diariamente a Operação Lava Jato. A novela, que buscava o “Pai” de todo um esquema corrupto, criava uma ficção em paralelo com a narrativa judicial, ambas convergindo para a ideia de um grande líder maligno a ser desmascarado. A partir dos vazamentos do Intercept Brasil, ficou claro que a operação também tinha seus roteiros e fins políticos, em uma estranha sincronia com a dramaturgia televisiva.

Hoje, a Globo já não detém o monopólio da audiência, mas seu poder se tornou mais insidioso. No passado, comandava massas anônimas através do IBOPE. Agora, na era digital, conhece seu público com precisão cirúrgica: sabe quem é, o que pensa, seus medos e desejos. Sabe, portanto, que parte de sua audiência depende de medicamentos públicos e que uma trama sobre placebos pode converter a gratidão ao Estado em dúvida.

O cenário é ainda mais preocupante quando olhamos para 2026. A Globo não por acaso reprisa seu passado, com o remake de Vale Tudo e a reprise de Rainha da Sucata—que cunhou a frase “chega de brincar de presidente”. A nova novela das nove, Três Graças, é acompanhada pelo samba “Clareou”, cuja letra é um manual do conformismo: um “deus placebo” que prega a anestesia diante do sofrimento. “A vida é para quem sabe viver” soa como um eco cruel para quem depende de um remédio que agora suspeita ser falso. A mensagem é que “ganhar e perder faz parte” e que basta esperar para “quando menos esperar, clareou”. Seria aceitável cantar isso a um escravizado no tronco no século XIX? A pergunta retórica expõe o caráter reacionário dessa filosofia de resignação.

Platão alertava que a arte é uma cópia imperfeita da realidade, que já é uma cópia imperfeita do mundo das ideias. Três Graças opera nesse nível duplo de ilusão: uma história que mistura mentira e verdade em um liquidificador narrativo, da qual jamais sairá um “líquido de verdades puras”. O risco é que a população, intoxicada por esse placebo midiático, abandone não apenas seus remédios, mas sua capacidade de discernir entre a ficção e a urgência de sua realidade.

Em 2026, é imperativo assistir à televisão com o ceticismo que ela merece. A Globo já mostrou inúmeras vezes qual é o seu lado, e historicamente não tem sido o lado do povo. É crucial entender que a novela é, antes de tudo, um produto de entretenimento desenhado para audiência e engajamento—não um guia para a vida ou um diagnóstico da realidade política. Fazer da arte um placebo para nossa existência é um risco que não podemos mais correr.


Os comentários não representam a opinião do Partido dos Trabalhadores de Muriaé; a responsabilidade é do autor do artigo.


Opinião Wesley

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